A “lógica” da fé é que, alguém que tenha sido convencido e convertido pela Verdade do Evangelho, traduza para a concretude da sua vida as virtudes da mesma fé. Isso significa que a fé reinventa um jeito novo de viver. Os Evangelhos explicitam a mudança da vida das pessoas no encontro com Jesus e ao permitirem que a paz enviada por Ele converta o antigo modo de viver em um modo novo e livre.

Pois bem, a contradição da realidade moderna tem invertido a lógica da fé, isto é, as pessoas escolhem o seu modo de viver e forçosamente traduzem as suas escolhas para a esfera do religioso. É verdade que a fé deve inculturar-se, mas isso não significa trair princípios. Além do mais, toda cultura que não “cultiva a vida” não é verdadeiramente cultura - é vício.

É bem visível a incoerência que muitos “fiéis” vivem hoje em relação ao Sagrado. Essas pessoas relacionam-se com a fé como se estivessem num supermercado onde se coloca no carrinho de compras somente aquilo que lhes interessa: “eu gosto da missa do padre fulano”, “eu só vou naquela igreja tal”, “se falar de política eu saio da missa”, etc. Também há aqueles que se sentam num banco de igreja como se estivessem num cinema: assisti, sorri, chora e se vai, apenas com nostalgia dos sentimentos amaciados e a consciência tranqüila de ter consumido mais um produto bom, mas sem assumir cumplicidade com a comunidade. Isso acontece desde o “fiel mascate” - que é aquele que negocia com um santo a troca de favores - até aquele que pensa que os sacramentos e sacramentais dispensados por Deus na sua Igreja é um produto de compra. Assim, não será espantoso se algum dia alguém resolver reclamar no PROCOM a não entrega da “Graça” solicitada.
Todo cidadão tem seus direitos e deveres como consumidor. Contudo, a diferença está naquilo é produto e aquilo que é Graça. A fé não é produto e o fiel não é negociante. Aliás, o fundamento do Evangelho está explícito na gratuidade da Encarnação onde Deus, por amor e só por amor, resolve salvar e “colorir” a vida de cada pessoa. A Graça é um favor que se obtém de Deus, não pelos méritos, mas por puro amor e bondade Dele mesmo. Hoje quase tudo é comercializável seguindo a lei do comércio e as pessoas tendem a relacionar como consumidores de favores divinos.

Até mesmo a caridade corre o risco de parecer troca: “eu dou ao pobre para que Deus me dê também”. Contudo, até mesmo aquilo que se oferece como caridade não lhe pertence, mas “tudo é do Pai”.

A fé verdadeira revela que a vida e tudo que a concerne é Dom de Deus. Não é preciso pagar para que Deus nos ouça. Uma das grandes diferenças que o Povo de Israel descobriu entre Javé e os deuses pagãos é que o Senhor é o único que entra na história da humanidade sem pedir-lhe nada em troca (cf. Dt 4, 31-39). É claro que a Graça não rejeita o esforço para melhorar a vida e a gratidão para retribuir no irmão o bem que Deus faz.
Em seus princípios fundamentais, o cristão deve mostrar que sua relação com o mundo e com o Sagrado é diferente dos costumes da sociedade de consumo. O risco de transformar as relações em unidade monetária é grande: é mais fácil pagar a diversão do filho do que se divertir com ele; é mais fácil pagar por aquilo que não lhe exige correspondência de afeto e gentileza. Porém, o essencial – o amor - nunca poderá ser vendido e, aliás, ele só ganha sentido quando ele é doação total e desinteressada (quando ele se torna ágape).
Devido relação de consumo no âmbito do Sagrado, elementos essenciais da fé católica são ameaçados de serem mal compreendidos. Tomemos como exemplo a Eucaristia: ela é o ápice da vida da Igreja, mas sem a Igreja, como elemento isolado, ela pode ser compreendida como amuleto. Por isso, tudo que se diz e se crê na Eucaristia aponta para o profundo mistério do amor de Deus que se potencializa no evento pascal (Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus). Também a intercessão dos santos, desvinculada da fé na indispensável bondade de Deus, é mais ou menos como cruzar os dedos na hora do pênalti (superstição).

A solução do pragmatismo e materialismo não é unilateral. É verdade que as paróquias e movimentos devem contribuir para a explicitação da gratuidade cristã. Contudo, cabe a cada cristão buscar viver, não só na igreja, mas também na rua, no trabalho e em casa uma relação verdadeiramente gratuita que ultrapassa a relação obstinada de perdas e ganhos e transpõe-se para uma relação de doação, onde o fundamento da caridade seja a razão principal.

Nossa fé é algo além do material, mas dizemos que ela também se materializa nas obras de misericórdia. Nossa fé é também “matéria” nas mãos calejadas que trabalham dignamente, é pão partilhado para a mesa do faminto, é sorriso no rosto do persistente, são as lágrimas nos olhos do solidário. Aquele que pratica tais obras sabe que pertence a Deus o bem compartilhado e, nesse caso, a relação não é de posse, é de doação. Nesse caso, não vale reclamar, pois “o cliente não tem a razão”.

Pe. Ângelo José Adão, SCJ 

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